Um Homem à Frente do seu Tempo – Wilhelm Reich
Wilhelm Reich |
Quando se fala em psicanálise, todos
estamos habituados a ouvir falar de Sigmund Freud. No entanto, o autor a ser
abordado nesta resenha é Wilhelm Reich considerado, em tempos, um dos seus mais
promissores discípulos. Estudou medicina na universidade de Viena, orientado
sempre para Biologia, Sexologia e Psicanálise. Mas devido às suas convicções
fortes e opiniões distintas dos restantes membros, em 1934, foi expulso da
Associação Psicanalítica de Viena, desvinculando-se assim de Freud (BBC, 2019).
Desde muito jovem, começou a desenvolver as
suas teorias, investigações, estudos e até invenções, sempre dotado de um grande
pensamento crítico. Nascido na Áustria, passou por diversos países, nos quais assistiu
a várias ditaduras e às duas grandes guerras, acabando por se estabelecer nos
Estados Unidos da América, onde criou o seu próprio instituto, o Orgone
Institute. Desenvolveu a vegetoterapia e a “energia vital do orgasmo”,
escrevendo diversos livros sobre estas temáticas, o fascismo e o carácter do ser humano (Britannica,
2019) . É nesta última temática que o livro em análise se
enquadra.
Sendo considerado por muitos um homem à
frente do seu tempo, foi castigado e a morte na prisão, em 1957, foi a
derradeira consequência de acusações que consistiam em fraude e abuso, relativamente
às suas terapias, estudos e testes (BBC, 2019). A título de curiosidade, antes deste trágico acontecimento, Einstein e
Reich trabalharam conjuntamente no desenvolvimento de um acumulador de energia através
de campos eletromagnéticos, que o autor utilizou para provar a existência do “orgone”,
no âmbito dos estudos sobre o orgasmo, e a denominação da invenção foi “caixas
sexuais”(BBC, 2019).
Capa do livro: "Escuta, Zé Ninguém!" |
Quem é o
Zé Ninguém?
É o homem comum, médio, que simboliza o
curioso vulgar, delator, perseguidor, aquele que recusa amor, conhecimento e autoconhecimento
como forma da sua condição medíocre (Batista,
2012).
“És tu o teu próprio Negreiro.”(W. Reich, 1978, p.24)
“Nem sequer sabes para que serve uma
biblioteca” (W. Reich,
1978, p.73)
O Zé Ninguém revela o empobrecimento da sociedade,
a nível humano e intelectual. Todos, em algum ponto da vida, fomos este ser
medíocre. Ele é o homem que finge ser ingénuo, mas é ardiloso e que diz em alto
e bom som que defende o povo, só porque fica bem. No entanto, só se preocupa consigo
próprio e com o retorno que terá – portanto, é um ser frio, preconceituoso e
calculista. Aparece, ainda, no desabafo de Reich com Zé Ninguém, a Maria
Ninguém - uma mulher que se despreza, que não se ama nem ama o próximo, que
julga e se queixa do que a rodeia. É professora e não sabe nem gosta de ensinar,
torturando os seus alunos, formatando mais homens comuns, com medo da mudança e
sem pensamento crítico.
“Tu mesmo te desprezas Zé Ninguém!” (W. Reich,
1978, p.24)
Todos podem ser o Zé Ninguém, desde
políticos que não defendem o povo, médicos que não ouvem os pacientes,
professores que não gostam de ensinar, ao padeiro, pedreiro ou o mero
analfabeto. Não existe uma categoria que feche o Zé Ninguém, a não ser as suas
atitudes e pensamentos. É um ser humano que rejeita a liberdade de escolha e
pensamento (Rodrigues,
2019).
“Foi-te dado a escolher entre a
constituição genuinamente democrática de Lenine e a ditadura de Estaline –
escolheste a ditadura de Estaline”(W. Reich,
1978, p.62)
Lenine era um líder liberal
influenciado pelas ideias de Karl Marx, que defendia o povo e os ideais de
igualdade. O mesmo Zé Ninguém assassinou Lincoln, um líder democrático,
que aboliu a escravatura; e, por meia dúzia de tostões, delatou e entregou
judeus, para serem enviados para os campos de concentração de Hitler. É o
soldado que vai para a guerra sem saber porquê e tampouco se dá ao trabalho de
perguntar, é quem lançou as bombas de Hiroxima e Nagasáqui, sem pensar nas
consequências. É o homem que julga uma mãe por deixar a filha levar um namorado
para casa e, em simultâneo, goza e humilha o amigo que é homossexual. É, ainda,
o homem que entregou Galileu à inquisição e deixou Marx morrer à fome nas ruas.
“Assassinaste-o Zé Ninguém, com a tua indolência,
a tua ignorância, o teu medo de esperança” (W.Reich,
1978, p.74)
Como pode o Zé Ninguém mudar?
Reich, ao longo de todo o livro, critica e
ataca o Zé Ninguém, tentando motivá-lo e incentivá-lo a mudar, a
ter consciência, pensamento crítico e a realizar uma introspeção de autoconhecimento,
procurando através das emoções de infelicidade, frustração, depressão e preocupação,
leva-lo a utilizar a sua inteligência emocional para transformar os seus sentimentos,
defeitos e fraquezas nos sonhos e objetivos reais que o preenchem e
lhe trazem felicidade.
“Tens medo de olhar para ti próprio,
tens medo da crítica, tal como tens medo do poder que te prometem e não
saberias usar. Nem te atreves a pensar que poderias ser diferente: livre em vez
de deprimido, direto em vez de cauteloso, amado às claras e não como um ladrão
da noite” (W.Reich, 1978, p.22)
“Todo o grande homem foi outrora um Zé
Ninguém que desenvolveu apenas uma qualidade: a de reconhecer as áreas em que
havia limitações e estreiteza no seu modo de pensar e agir.”(W.Reich, 1978, p. 23)
“E, acima de tudo, procura pensar
corretamente, ouve a tua voz interior (…). Sê tu próprio. (…) Conhece-te a ti
próprio (…).” (W.Reich,
1978, p.65)
E agora, qual será a minha opinião?
A primeira pessoa que nunca esteve no
lugar do Zé Ninguém que se acuse! Ainda que não de forma intencional, todos nós
já fomos este Homem. Daí a minha escolha para esta Book Review, já que me identifiquei
com o pensamento do autor e com a sua revolta. Basta olhar em volta para que
encontremos um mundo repleto de “Zé Ninguém”, sejam colegas, amigos, políticos
ou mesmo os médicos que nos atendem nos hospitais. Se espreitarmos para o nosso
cantinho do smartphone, seja nas redes sociais, nas notícias ou nos media,
é fácil perceber o conteúdo falso que nos rodeia, as falsas palavras, ideais e
moralismos com que somos bombardeados todos os dias e em todo o lado (Sérgio,
2012).
Achei
este livro muito rico no que respeita ao autoconhecimento e ao espírito crítico.
É um incentivo à introspeção, à análise do que nos rodeia e dos nossos valores
e desejos. É um incentivo ao pensamento dos “Porquês” desta vida e à cultura, ao
não ter medo de assumir que não se sabe e que se vai procurar, e, nesse caso,
aprender, reaprender e descobrir novos fatores importantes.
Subentende-se também um forte recuo
histórico até às grandes ditaduras, aos assassinatos de políticos justos e
estudiosos à frente do seu tempo, pessoas que tiveram a coragem de ser
diferentes e que se destacaram a tentar mostrá-lo.
Recomendo a leitura atenta, na companhia
de um bloco de notas, pois, para mim, este livro foi um desafio, e escrever
sobre ele, um desafio ainda maior, por sentir que não lhe consigo fazer
justiça. Considero Reich um visionário, quer nos seus estudos, quer nas suas
obras, visto conseguir compreender as pessoas, estudá-las e descrever de uma
forma tão crua a sua verdadeira essência.
Contacto: rafaelaguerracosta@gmail.com
Perfil: Pró-ativa, dinâmica e
cheia de vontade de aprender. Licenciada em Contabilidade e Administração e a
frequentar o Mestrado em Gestão de Marketing no IPAM. Virada para novidade, mas
ao mesmo tempo apaixonada por livros e pintura.
Referências:
Batista, L. de O. S. (2012). O complexo de zé-ninguém e a
educação em W. Reich (No. 2236–9767).
https://doi.org/ttp://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v22n53p93-107
Britannica, T. E.
of E. (2019). Wilhelm Reich. Retrieved November 5, 2019, from Encyclopædia
Britannica, inc. website: https://www.britannica.com/biography/Wilhelm-Reich
Nascimento, E. (2016). Literatura: Escuta, Zé Ninguém! –
Wilhelm Reich. Retrieved November 6, 2019, from Gabinete Cultural website:
http://cabinecultural.com/2016/04/14/literatura-escuta-ze-ninguem-wilhelm-reich/
Rodrigues, L. (2019). Escuta Zé Ninguém! Retrieved November
10, 2019, from JM Madeira website:
https://www.jm-madeira.pt/opinioes/ver/2643/Escuta_Ze_Ninguem
Sérgio, M. (2012). Escuta, Zé Ninguém! Retrieved November 8,
2019, from A Página da Educação website:
https://www.apagina.pt/?aba=7&cat=557&doc=14587&mid=2
Wilhelm Reich: Os controversos tratamentos sexuais de um dos
psicanalistas mais radicais da história. (2019). Retrieved October 20, 2019,
from BBC website: https://www.bbc.com/portuguese/geral-47407358
Wilhelm Reich. (1978). Escuta, Zé Ninguém! (9th ed.; P. D.
Quixote, Ed.). Lisboa.
Wilhelm Reich “The
German and Russian state apparatuses grew out of despotism...” (2019).
Retrieved October 30, 2019, from Reddit website:
https://www.reddit.com/r/QuotesPorn/comments/b5tzy8/wilhelm_reich_the_german_and_russian_state/
Referências para citação:
Costa, R. (2019). A revolta conturbada de
Wilhelm Reich em “Escuta, Zé Ninguém!” -Book Review. Research oriented by PhD Patrícia Araújo within
"Leadership and Negotiation" Curricular Unit and Presented at Ipam
Leadership Challenge.4ª Ed. Porto: Portuguese Institute of Marketing and
Administration. Available at:
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