20 novembro 2019

A revolta conturbada de Wilhelm Reich em “Escuta, Zé Ninguém!” – Book Review by Rafaela Costa





Um Homem à Frente do seu Tempo – Wilhelm Reich


Wilhelm Reich
Quando se fala em psicanálise, todos estamos habituados a ouvir falar de Sigmund Freud. No entanto, o autor a ser abordado nesta resenha é Wilhelm Reich considerado, em tempos, um dos seus mais promissores discípulos. Estudou medicina na universidade de Viena, orientado sempre para Biologia, Sexologia e Psicanálise. Mas devido às suas convicções fortes e opiniões distintas dos restantes membros, em 1934, foi expulso da Associação Psicanalítica de Viena, desvinculando-se assim de Freud (BBC, 2019).
Desde muito jovem, começou a desenvolver as suas teorias, investigações, estudos e até invenções, sempre dotado de um grande pensamento crítico. Nascido na Áustria, passou por diversos países, nos quais assistiu a várias ditaduras e às duas grandes guerras, acabando por se estabelecer nos Estados Unidos da América, onde criou o seu próprio instituto, o Orgone Institute. Desenvolveu a vegetoterapia e a “energia vital do orgasmo”, escrevendo diversos livros sobre estas temáticas,  o fascismo e o carácter do ser humano (Britannica, 2019) . É nesta última temática que o livro em análise se enquadra.   
Sendo considerado por muitos um homem à frente do seu tempo, foi castigado e a morte na prisão, em 1957, foi a derradeira consequência de acusações que consistiam em fraude e abuso, relativamente às suas terapias, estudos e testes (BBC, 2019). A título de curiosidade,  antes deste trágico acontecimento, Einstein e Reich trabalharam conjuntamente no desenvolvimento de um acumulador de energia através de campos eletromagnéticos, que o autor utilizou para provar a existência do “orgone”, no âmbito dos estudos sobre o orgasmo, e a denominação da invenção foi “caixas sexuais(BBC, 2019).


Capa do livro: "Escuta, Zé Ninguém!"
“Escuta, Zé Ninguém! Não é um documento científico, mas humano” (W. Reich, 1978, p.15)

Quem é o Zé Ninguém?
É o homem comum, médio, que simboliza o curioso vulgar, delator, perseguidor, aquele que recusa amor, conhecimento e autoconhecimento como forma da sua condição medíocre (Batista, 2012).

“És tu o teu próprio Negreiro.”(W. Reich, 1978, p.24)
          “Nem sequer sabes para que serve uma biblioteca” (W. Reich, 1978, p.73)

O Zé Ninguém revela o empobrecimento da sociedade, a nível humano e intelectual. Todos, em algum ponto da vida, fomos este ser medíocre. Ele é o homem que finge ser ingénuo, mas é ardiloso e que diz em alto e bom som que defende o povo, só porque fica bem. No entanto, só se preocupa consigo próprio e com o retorno que terá – portanto, é um ser frio, preconceituoso e calculista. Aparece, ainda, no desabafo de Reich com Zé Ninguém, a Maria Ninguém - uma mulher que se despreza, que não se ama nem ama o próximo, que julga e se queixa do que a rodeia. É professora e não sabe nem gosta de ensinar, torturando os seus alunos, formatando mais homens comuns, com medo da mudança e sem pensamento crítico.

“Tu mesmo te desprezas Zé Ninguém!” (W. Reich, 1978, p.24)

Todos podem ser o Zé Ninguém, desde políticos que não defendem o povo, médicos que não ouvem os pacientes, professores que não gostam de ensinar, ao padeiro, pedreiro ou o mero analfabeto. Não existe uma categoria que feche o Zé Ninguém, a não ser as suas atitudes e pensamentos. É um ser humano que rejeita a liberdade de escolha e pensamento (Rodrigues, 2019).

“Foi-te dado a escolher entre a constituição genuinamente democrática de Lenine e a ditadura de Estaline – escolheste a ditadura de Estaline(W. Reich, 1978, p.62)

Lenine era um líder liberal influenciado pelas ideias de Karl Marx, que defendia o povo e os ideais de igualdade. O mesmo Zé Ninguém assassinou Lincoln, um líder democrático, que aboliu a escravatura; e, por meia dúzia de tostões, delatou e entregou judeus, para serem enviados para os campos de concentração de Hitler. É o soldado que vai para a guerra sem saber porquê e tampouco se dá ao trabalho de perguntar, é quem lançou as bombas de Hiroxima e Nagasáqui, sem pensar nas consequências. É o homem que julga uma mãe por deixar a filha levar um namorado para casa e, em simultâneo, goza e humilha o amigo que é homossexual. É, ainda, o homem que entregou Galileu à inquisição e deixou Marx morrer à fome nas ruas.

“Assassinaste-o Zé Ninguém, com a tua indolência, a tua ignorância, o teu medo de esperança(W.Reich, 1978, p.74)

Como pode o Zé Ninguém mudar?


Reich, ao longo de todo o livro, critica e ataca o Zé Ninguém, tentando motivá-lo e incentivá-lo a mudar, a ter consciência, pensamento crítico e a realizar uma introspeção de autoconhecimento, procurando através das emoções de infelicidade, frustração, depressão e preocupação, leva-lo a utilizar a sua inteligência emocional para transformar os seus sentimentos, defeitos e fraquezas nos sonhos e objetivos reais que o preenchem e lhe trazem felicidade.

Tens medo de olhar para ti próprio, tens medo da crítica, tal como tens medo do poder que te prometem e não saberias usar. Nem te atreves a pensar que poderias ser diferente: livre em vez de deprimido, direto em vez de cauteloso, amado às claras e não como um ladrão da noite” (W.Reich, 1978, p.22)

“Todo o grande homem foi outrora um Zé Ninguém que desenvolveu apenas uma qualidade: a de reconhecer as áreas em que havia limitações e estreiteza no seu modo de pensar e agir.”(W.Reich, 1978, p. 23)

“E, acima de tudo, procura pensar corretamente, ouve a tua voz interior (…). Sê tu próprio. (…) Conhece-te a ti próprio (…).” (W.Reich, 1978, p.65)

E agora, qual será a minha opinião?


A primeira pessoa que nunca esteve no lugar do Zé Ninguém que se acuse! Ainda que não de forma intencional, todos nós já fomos este Homem. Daí a minha escolha para esta Book Review, já que me identifiquei com o pensamento do autor e com a sua revolta. Basta olhar em volta para que encontremos um mundo repleto de “Zé Ninguém”, sejam colegas, amigos, políticos ou mesmo os médicos que nos atendem nos hospitais. Se espreitarmos para o nosso cantinho do smartphone, seja nas redes sociais, nas notícias ou nos media, é fácil perceber o conteúdo falso que nos rodeia, as falsas palavras, ideais e moralismos com que somos bombardeados todos os dias e em todo o lado (Sérgio, 2012).  
Achei este livro muito rico no que respeita ao autoconhecimento e ao espírito crítico. É um incentivo à introspeção, à análise do que nos rodeia e dos nossos valores e desejos. É um incentivo ao pensamento dos “Porquês” desta vida e à cultura, ao não ter medo de assumir que não se sabe e que se vai procurar, e, nesse caso, aprender, reaprender e descobrir novos fatores importantes.
Subentende-se também um forte recuo histórico até às grandes ditaduras, aos assassinatos de políticos justos e estudiosos à frente do seu tempo, pessoas que tiveram a coragem de ser diferentes e que se destacaram a tentar mostrá-lo.
Recomendo a leitura atenta, na companhia de um bloco de notas, pois, para mim, este livro foi um desafio, e escrever sobre ele, um desafio ainda maior, por sentir que não lhe consigo fazer justiça. Considero Reich um visionário, quer nos seus estudos, quer nas suas obras, visto conseguir compreender as pessoas, estudá-las e descrever de uma forma tão crua a sua verdadeira essência.






Autora: Rafaela Guerra da Costa
Contacto: rafaelaguerracosta@gmail.com
Perfil: Pró-ativa, dinâmica e cheia de vontade de aprender. Licenciada em Contabilidade e Administração e a frequentar o Mestrado em Gestão de Marketing no IPAM. Virada para novidade, mas ao mesmo tempo apaixonada por livros e pintura.  






Referências:

Batista, L. de O. S. (2012). O complexo de zé-ninguém e a educação em W. Reich (No. 2236–9767). https://doi.org/ttp://dx.doi.org/10.15600/2236-9767/impulso.v22n53p93-107
Britannica, T. E. of E. (2019). Wilhelm Reich. Retrieved November 5, 2019, from Encyclopædia Britannica, inc. website: https://www.britannica.com/biography/Wilhelm-Reich
Nascimento, E. (2016). Literatura: Escuta, Zé Ninguém! – Wilhelm Reich. Retrieved November 6, 2019, from Gabinete Cultural website: http://cabinecultural.com/2016/04/14/literatura-escuta-ze-ninguem-wilhelm-reich/
Rodrigues, L. (2019). Escuta Zé Ninguém! Retrieved November 10, 2019, from JM Madeira website: https://www.jm-madeira.pt/opinioes/ver/2643/Escuta_Ze_Ninguem
Sérgio, M. (2012). Escuta, Zé Ninguém! Retrieved November 8, 2019, from A Página da Educação website: https://www.apagina.pt/?aba=7&cat=557&doc=14587&mid=2
Wilhelm Reich: Os controversos tratamentos sexuais de um dos psicanalistas mais radicais da história. (2019). Retrieved October 20, 2019, from BBC website: https://www.bbc.com/portuguese/geral-47407358
Wilhelm Reich. (1978). Escuta, Zé Ninguém! (9th ed.; P. D. Quixote, Ed.). Lisboa.
Wilhelm Reich “The German and Russian state apparatuses grew out of despotism...” (2019). Retrieved October 30, 2019, from Reddit website: https://www.reddit.com/r/QuotesPorn/comments/b5tzy8/wilhelm_reich_the_german_and_russian_state/


Referências para citação:

Costa, R. (2019). A revolta conturbada de Wilhelm Reich em “Escuta, Zé Ninguém!” -Book Review. Research oriented by PhD Patrícia Araújo within "Leadership and Negotiation" Curricular Unit and Presented at Ipam Leadership Challenge.4ª Ed. Porto: Portuguese Institute of Marketing and Administration. Available at:


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